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A orientação de nossos afetos

Por Celito Meier em 21/10/2020


A orientação de nossos afetos


Agostinho de Hipona (354-430), um dos pensadores mais focados no tema do cultivo da interioridade, afirmava que os indivíduos se tornam vítimas de uma grande inversão que realizavam, condicionados pelas pressões culturais. E essa inversão seria fonte de muito sofrimento, pois implicava em perda de si mesmo. Ele se referia à inversão entre o Uti e o frui, entre o usar as coisas e amar as pessoas. Segundo Agostinho, quando o indivíduo passa a amar as coisas e a usar as pessoas acontece essa inversão fundamental responsável pela própria alienação do sujeito. Metaforicamente, é como se saísse dos trilhos projetados, dos horizontes sonhados. Nesse instante, cresce a névoa, a falta de clareza, a falta de perspectiva.

O critério que Agostinho apresenta nesta distinção diz que as coisas do mundo, bens finitos, devem ser usadas a serviço da elevação espiritual; são meios, portanto. As realidades materiais não devem ser transformadas em fins, como se fossem os objetos merecedores do nosso gozo espiritual, do nosso deleite.

A grande questão que aqui se coloca é: o movimento do nosso amor se dirige para qual objeto? Ou, para qual natureza de objetos nosso amor se volta? De acordo com Agostinho, há uma luta de vontades que dilaceram a alma humana, uma de natureza carnal, outra de natureza espiritual. Fazendo uma releitura do pensamento filosófico de Platão e seguindo a teologia cristã do apóstolo Paulo, Agostinho afirma que tendências da carne vão na direção contrária daquelas inclinações próprias da vida do espírito.

Nessa perspectiva, aos impulsos passionais, de natureza cega, deve-se resistir com a firmeza de alma, na qual a consciência se volta para a grandeza dos projetos de vida, livremente assumidos na lucidez da consciência. Essa convicção relacionada ao que verdadeiramente pode trazer alegria duradoura e paz interior é condição prévia para lutar contra os apetites da carne. E essa paz interior terá relação com ações que caminham na afinidade ao projeto pensado e querido.

No que tange à vida a dois, à vivência de casal, constitui um enorme desafio crescer no discernimento e na sabedoria de avaliar os impulsos e verificar a direção para a qual nos lançam, e saber resistir ou canalizar os impulsos para a sustentabilidade ou longevidade do amor, sabendo que há forças que convergem para o amor e há forças que o dilaceram.

Essa ideia está muito bem retratada na alegoria de Cocheiro, de Platão. Nessa alegoria, há uma carruagem conduzida por um cocheiro e puxada por dois cavalos, um dócil e obediente, outro furioso e indisciplinado. A parte racional da alma é o condutor; a parte emocional, o cavalo obediente. Tanto o condutor como o cavalo dócil precisam de muita atenção e esforço para controlar o rebelde, buscando uma atuação conjunta. 

Fazendo uma aplicação ao campo da vida a dois, essa alegoria pode nos ajudar a pensar a importância da consciência e do afeto como condutores de nossa vida na direção pensada e projetada. Se deixarmos a impulsividade governar a carruagem irá tombar e não chegaremos ao destino sonhado.

Nessa alegoria, verifica-se a tripartição da alma. Na parte racional, representada pelo comando do cocheiro, encontra-se a referência humana fundamental, o guia da alma, a consciência. No peito, encontra-se a parte irascível, da força, da coragem. Na parte inferior, representado pelo cavalo da esquerda, encontram-se as paixões cegas. A identidade humana carrega todas essas potencialidades em si. A serenidade de uma vida bem desenvolvida está diretamente relacionada com a habilidade de saber bem usar e harmonizar essas potencialidades tornando-as compatíveis com a vida a dois.

 


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